Cordel, verbo do povo: palavra pendurada que sustenta a cultura popular

Uma homenagem à arte que rima memória, denúncia e encanta desde as feiras até as plataformas digitais.
Por Sérgio Melo | Paraíba Cultural
No mês de agosto, celebramos o cordel. E como nordestino, comunicador e amante das palavras bordadas com rima, ritmo e resistência, não poderia deixar essa data passar em branco. O Dia do Cordel, comemorado em 19 de agosto, é mais do que uma simples efeméride: é a reafirmação da força de uma arte popular que atravessa séculos, rompe fronteiras e transforma papel barato em patrimônio cultural imaterial do Brasil.
Falar de cordel é falar da alma do povo nordestino. Uma literatura feita para ser falada, declamada, pendurada em barbantes, lida nas feiras, nas calçadas, nas praças e, mais recentemente, nas redes. Sua origem remonta ao século XVI, em Portugal, quando folhetos eram vendidos pendurados em cordões — daí o nome “cordel”. No Brasil, ganhou identidade própria, voz própria e um sotaque carregado de sabedoria popular, crítica social e lirismo.
Foi nas feiras nordestinas — como a de Campina Grande, a de Caruaru e a de Juazeiro do Norte — que essa literatura se consolidou como linguagem do povo. Autores como Leandro Gomes de Barros (considerado o pai do cordel brasileiro), João Martins de Athayde, Manoel d’Almeida Filho, Rodrigues de Carvalho e Silvino Pirauá de Lima tornaram-se lendas vivas da palavra rimada. A eles se somaram nomes como Patativa do Assaré, que encantou o país com sua poesia rural e filosófica, e Mestre Azulão, voz poderosa da Paraíba.
Leandro Gomes de Barros, inclusive, publicou mais de 240 folhetos — muitos deles republicados até hoje — com títulos que ainda ressoam no imaginário popular, como O cavalo que defecava dinheiro ou A história da princesa Rosa e o príncipe Camundá. E vale lembrar: foi sua obra que inspirou Ariano Suassuna a criar o clássico O Auto da Compadecida. Isso mostra o quanto o cordel está entranhado em outras linguagens, do teatro ao cinema.
A Paraíba tem papel de destaque nesse universo. Somos berço e morada de grandes cordelistas, xilogravadores e editores. De Cajazeiras a Campina Grande, de Monteiro ao Vale do Piancó, há uma rede viva de poetas populares que mantém essa chama acesa. A cidade de Guarabira, por exemplo, é terra de grandes folheteiros, e João Pessoa já recebeu encontros memoráveis de cordelistas de todo o Nordeste.
Essa literatura, embora popular, jamais foi simples. O cordel fala de amor, honra, vingança, fé, política, ecologia e desigualdade. Ele é veículo de denúncia e também de encantamento. É ao mesmo tempo ferramenta de educação, arquivo histórico e espetáculo oral. Com seus versos em redondilha maior, suas sextilhas e martelos agalopados, o cordel constrói pontes entre gerações.
A oralidade do cordel, aliada à xilogravura como arte visual complementar, é outro capítulo à parte. A capa de um folheto de cordel é quase um manifesto visual: traços firmes, cenas dramáticas, rostos expressivos. Mestres da xilogravura como J. Borges, Gilvan Samico e o paraibano José Costa Leite eternizaram cenas do imaginário popular e elevaram o cordel ao status de arte plástica.
Hoje, novos nomes continuam essa história com a mesma paixão. Jovens cordelistas da Paraíba têm usado o cordel em escolas, slams, festivais, redes sociais e até podcasts. A literatura de cordel tem dialogado com temas contemporâneos — feminismo, ancestralidade, negritude, ecologia, LGBTQIAP+, direitos humanos — sem jamais abandonar suas raízes.
Como comunicador, sempre defendi que o cordel é uma das maiores invenções culturais que o Brasil já produziu. E como artista da palavra, não há emoção maior do que ver uma criança declamar uma sextilha na escola ou um idoso recitar de cor um cordel que leu há 50 anos. Isso é memória viva, é patrimônio afetivo, é resistência cultural.
Neste Dia do Cordel, minha homenagem vai para cada poeta popular, cada folheteiro, cada mestra e mestre do verso que carrega no peito o compromisso com a palavra que educa, diverte, denuncia e transforma.
Longa vida à literatura de cordel. Que ela continue pendurada em nossas feiras, nos nossos corações e nas plataformas digitais. Porque enquanto houver cordel, haverá voz para o povo.