O fio invisível que tecê nossa alma: a força viva do nosso folclore

Dia do folclore brasileiro. Credito: Estúdio Q-Ideia/Sérgio Melo
Por Sérgio Melo
Hoje, dia 22 de agosto, não é apenas uma data no calendário. É um chamado. Um eco que vem dos terreiros, das beiras dos rios, dos cantos escuros das matas e das vozes antigas que sussurram em nosso ouvido. É o Dia do Folclore. E eu, Sérgio Melo, não consigo pensar nesse tema sem ser transportado para a infância, para a sombra das árvores nos sítios dos meus tios na região de Aroeiras e Umbuzeiro, e não posso esquecer da chácara de minha tia em Luziânia, em Goiás, onde as histórias não eram apenas contadas, eram vividas na pele, no frio na espinha e no calor do abraço reunido.
Nossos grandes escritores, verdadeiros guardiões dessa chama, souberam capturar essa essência e eternizá-la em palavras. Quem não se arrepiou com o “Compadre, que foi isso?” de José Lins do Rego, diante do assombro do mundo? Quem não sentiu o cheiro do açúcar e o medo do desconhecido nas histórias de monstros que povoam os engenhos de Gilberto Freyre? E como não lembrar da genialidade de Ariano Suassuna, que no Auto da Compadecida nos deu a mais pura essência do povo nordestino, sua fé, sua astúcia e seu humor ácido para enfrentar as dificuldades? Ele capturou a alma do sertão na frase “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, de Euclides da Cunha, e a transformou em arte. Esses gigantes não escreveram sobre um povo distante; escreveram sobre nós. Eles pegaram o barro do folclore e moldaram a literatura que nos define.
E que barro rico é o nosso! O Nordeste é um caldeirão fervilhante de mitos e lendas. O Saci-Pererê, com seu gorro vermelho e seus travessuras, não é um simples duende; é a representação do espírito indomável da mata. A Cuca, a temida jacaré bruxa que rouba crianças desobedientes, é o bicho-papão mais eficiente que já existiu. O Curupira, com seus pés virados para trás, é o guardião das florestas, enganando os caçadores gananciosos. E o Boi da Cara Preta? Ah, esse ainda hoje me faz olhar para os cantos escuros do quarto.
Mas nossa riqueza não para no universo luso-indígena. Ela se aprofunda nas raízes mais ancestrais desta terra. As lendas indígenas, como a da Iara, a mãe-d’água cujo canto é um chamado irresistível e fatal, falam de um respeito profundo pelas forças da natureza. Já as narrativas quilombolas, forjadas na resistência e na dor, mas também na esperança, trazem entidades poderosas como a Caipora, muitas vezes retratada como uma figura protetora dos animais, que pode ser amiga ou inimiga do homem, dependendo de sua intenção.
Tudo isso, meus caros leitores, não é apenas entretenimento. É ancestralidade. É pertencimento. É o cadinho que moldou o perfil do nosso povo: resiliênte como o sertão, alegre e criativo como o forró, profundo e misterioso como os rios que correm sob a terra. Nosso folclore é a nossa primeira constituição não escrita, um conjunto de regras morais, sociais e de convívio com o meio ambiente transmitido por gerações.
E quando ampliamos o olhar para o Brasil, a grandeza dessa cultura popular nos enche de orgulho. Somos um país único, forjado na confluência dos povos originários da América, dos europeus, dos africanos e, ao longo dos séculos, de contribuições de orientais e imigrantes de todo o mundo. Do Norte ao Sul, temos o Boto Cor-de-Rosa da Amazônia, o Negrinho do Pastoreio do Sul, a Mula sem Cabeça do Centro-Oeste, o Bumba Meu Boi que explode em cores e ritmos por todo o país.
Essa diversidade fantástica é a nossa verdadeira beleza natural humana. É uma força cultural que, assim como buscamos fortalecer nossa democracia, nos alimenta na luta por justiça social e ambiental. Ela nos lembra que somos feitos de muitos, mas somos um só. O folclore é o fio invisível que conecta o menino do interior da Paraíba ao ribeirinho do Amazonas, a baiana do acarajé ao gaúcho dos pampas.
Neste dia, e em todos os dias, que possamos ouvir esses sussurros. Que possamos contar essas histórias para nossos filhos. Que possamos honrar essa herança que não é do passado, mas é a energia viva que pulsa e nos guia para o futuro. O Brasil que a gente ama está aí, na força de sua cultura. Viva o nosso folclore!
Sérgio Melo – Jornalista e Gestor Ambiental. Coordenador de projetos de Educação Ambiental no portal Paraíba Cultural e no Q-Ideia – Design e Comunicação. Atua em ações integradas de sustentabilidade, cultura e desenvolvimento territorial no Estado da Paraíba.